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sábado, 2 de junho de 2012

Reforma Universitária: Os noventa anos da Revolta de Córdoba e a nova hora americana - Paulo Vinícius S da Silva

Publicado na Revista  Juventude.Br de dezembro de 2008
do Centro de Estudos e Memórias da Juventude - www.cemj.org.br 


Dois mil e oito marcou o aniversário de 90 anos da revolta estudantil de Córdoba, episódio que alçou a Reforma Universitária à condição de uma das mais importantes bandeiras do movimento estudantil latino-americano.


O que foi a Rebelião de Córdoba

Naquele junho de 1918 a Europa vivia os últimos capítulos da Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa dava seus primeiros passos, que modificariam em profundidade os rumos do Planeta.
Naquele período, e desde o fim do século 19, os estudantes já tinham peso como a parcela mais ativa da juventude quanto às questões políticas1. No Uruguai, no Chile e na Argentina iniciavam-se as movimentações
pela organização gremial e, especificamente em Montevidéu, já em 1908 reúne-se um “Primeiro Congresso de Estudantes Americanos”. Na Argentina, a efervescência estudantil se dava em meio a um momento de renovação política, com a ascensão ao governo de Hipólito Yrigoyen2.

Naquela quadra é que se levantaram os estudantes da Universidade de Córdoba, província dominada pela
‘antiga classe letrada que junto ao clero instruído e com os funcionários públicos exercia o domínio
espiritual na província’.

Em um país cujas universidades eram os centros de discussão, crítica, elaboração e reprodução do discurso da modernidade, a Universidade de Córdoba se exilava dos impulsos do mundo moderno

"(...) fundada em 1613 pelos jesuítas, ademais de ostentar o prestígio de ser a primeira universidade estabelecida na Argentina, mantinha em sua estrutura de poder e na organização dos estudos
e conteúdos os princípios de sua fundação, apesar de desde 1858 ter passado a depender administrativamente do governo nacional3."

É contra essa tríplice aliança que se levantam os estudantes cordobeses. Seu manifesto, belo e contundente, ainda cala fundo. Vejamos alguns trechos:

“As universidades têm sido até aqui (...) o lugar aonde todas as formas de tiranizar e de insensibilizar acharam a cátedra que as ditasse (...) chegando a ser assim o fiel reflexo destas sociedades decadentes que se empenham em oferecer o triste espetáculo de uma imobilidade senil. Por isso a ciência, frente a estas casas mudas e fechadas, passa silenciosa ou entra mutilada e grotesca para o serviço burocrático.”


“Nosso regime universitário – mesmo o mais recente – é anacrônico. Está fundado sobre uma espécie de direito divino; o direito divino do professorado universitário. Cria-se a si mesmo. Nele nasce e nele morre, mantendo um distanciamento olímpico.”

“A Federação Universitária de Córdoba se levanta para lutar contra esse regime (...). Reivindica um governo estritamente democrático e sustenta que, na comunidade universitária, a soberania, o direito de dar-se governo próprio radica principalmente nos estudantes. O conceito de autoridade que corresponde e acompanha um diretor ou um professor em um lar de estudantes universitários não pode apoiar-se na força de disciplinas estranhas à substância mesma dos estudos. A autoridade, em um lar de estudantes, não se exercita mandando, mas sugerindo e amando: ensinando.”


“Se não existe um vínculo espiritual entre o que ensina e o que aprende, todo ensino é hostil e 
por conseguinte infecundo. Toda a educação é uma longa obra de amor aos que aprendem. Fundar 
a garantia de uma paz fecunda no artigo combinatório de um regulamento ou de um estatuto é, em todo caso, amparar um regime de quartel, mas não um trabalho de ciência.”


“Acusam-nos agora de insurretos em nome de uma ordem que não discutimos, mas que nada tem 
conosco. Se é assim, se em nome da ordem querem continuar nos enganando e embrutecendo, proclamamos bem alto o direito da insurreição.”


“A juventude (...) não se equivoca nunca na eleição de seus próprios mestres. Ante os jovens não se faz mérito adulando ou comprando. É preciso deixar que eles mesmos elejam seus professores e diretores, seguros de que o acerto vai coroar suas determinações. Doravante, só poderão ser professores na república universitária os verdadeiros construtores de almas, os criadores de verdade, de beleza e de bem.”


“Na Universidade Nacional de Córdoba e nesta cidade não foram presenciadas desordens; se 
contemplou e se contempla o nascimento de uma verdadeira revolução que há de agrupar bem rápido sob sua bandeira a todos os homens livres do continente.”

“A juventude universitária de Córdoba afirma que jamais fez questão de nomes nem de empregos. Se levantou contra um regime administrativo, contra um método docente, contra um conceito de autoridade. As funções públicas se exercitavam em benefício de determinadas camarilhas.”

“A juventude já não pede. Exige que se reconheça o direito de exteriorizar esse pensamento próprio nos corpos universitários por meio de seus representantes.”

O manifesto e a rebelião dos estudantes levaram à ocupação da Universidade e ao convite à população para assistir as aulas. A revolta impulsionou a estruturação da Federação Universitária dos Estudantes, que
realizou seu primeiro congresso naquela cidade no mesmo ano. A intervenção do governo nacional
respaldou as reivindicações estudantis e levou a uma reforma acadêmica que rompeu em grande medida a dominação clerical e o alijamento dos estudantes das questões acadêmicas. Esses êxitos motivam até hoje a luta pela Reforma Universitária na América Latina.

Razões da longevidade do espírito de Córdoba

A longevidade da principal bandeira da rebelião – a Reforma Universitária – tem íntima sintonia com a contínua afirmação política da juventude estudantil ao longo do século passado. Relaciona-se também à defesa do seu direito de participação nas decisões das universidades, na definição de seu modelo educacional e no questionamento de seus conteúdos curriculares. A Reforma Universitária inspira também a luta dos estudantes em busca de uma universidade vinculada às aspirações mais amplas do povo, luta esta que se 
constitui em parte indissociável da batalha por mudanças mais profundas na América Latina.

A importância dos estudantes universitários e da universidade enquanto espaço formador de quadros para todos os campos – inclusive o político – nos países latino-americanos deve ser também elencada. “De fato, a Universidade atua como a grande agência, não só formadora como seletora dos quadros dirigentes
da sociedade”4.

Outro elemento a ser destacado é a própria importância do ensino superior em todo o século 20, seja para repetir e legitimar a dependência, seja para afirmar o pensamento autônomo e a aspiração secular
à independência intelectual, política, econômica e cultural.

Ante tais desafios e tendo em conta o papel da universidade como palco privilegiado dessas questões, é compreensível que as luzes lançadas por Córdoba tenham inspirado ao longo dos últimos 90 anos sucessivas gerações de estudantes em busca de novos caminhos para a América Latina.


Como Hugo Cancino esclarece:

"Definitivamente, o projeto desta nova geração foi, em termos gramscianos, a criação a partir da Universidade reformada de um tipo de intelectual moderno que substituísse os sacerdotes e os intelectuais tradicionais articulados com a oligarquia. Estes novos intelectuais deveriam criar a nova hegemonia espiritual, cultural e ética que permitisse às camadas médias e subalternas realizar a modernização das sociedades da América Latina5.

Em busca da nova hora americana

Em O Príncipe, obra que versa sobre a eficácia da ação política, Maquiavel apela para as noções de fortuna e virtú, sendo a primeira algo mais que a sorte, podendo ser interpretada como o cenário político e sua
configuração sempre volátil e muitas vezes surpreendente. Já a virtú relaciona-se aos méritos, ao valor, à capacidade, ao poder realizador. O mestre florentino chamou atenção para a raridade da junção de ambas, destacando que possibilidade e capacidade de realizar (e de reconhecer a quadra política favorável) apenas
extraordinariamente andam juntas.  Ainda hoje, a força necessária e a capacidade de avaliar o momento oportuno e a justa palavra de ordem permanecem essenciais ao êxito de qualquer ação política transformadora.

Ocorre que vivemos uma quadra política singular, ansiada por sucessivas gerações de lutadores nos últimos 200 anos pelo menos. O atual momento só encontra paralelo no princípio do século XIX. Em 1808, com a chegada da família real ao Brasil e com o início da epopéia do Libertador Simón Bolívar pela independência das colônias hispano-americanas, tivemos ombro a ombro líderes que plasmaram anseios de liberdade e independência: os próceres latino-americanos Bolívar, Martí, San Martín, José Bonifácio, D. Pedro I e O´Higgins, dentre outros. Nos dias de hoje, parecem cavalgar novamente pela América Latina os próceres
de outrora. Mais que nunca nosso destino comum latino-americano impõe-nos tirar as devidas lições do passado, imprescindíveis para escrevermos a inédita história que se descortina graças a nossas ações e lutas.

Esta fortuna é única, e pode ser a última – o catastrofismo não é meu, mas do painel climático da
ONU. Não devemos economizar em nossas pretensões, nestes dias de tantas mudanças. A América Latina e o Brasil não deram ainda à humanidade a contribuição civilizacional que poderiam e que deles se espera. E, como naqueles primeiros tempos do século XIX, devemos, tal qual Bolívar, pensar o mundo em convulsão, e
buscar o nosso espaço na redefinição do “equilíbrio do universo”, como disse o Libertador. É necessário fazê-lo nos grandes temas e também naqueles mais próximos de nossas possibilidades, pois a luta contra o imperialismo dá-se também na construção de uma nova universidade.

Revisitar as memoráveis páginas da Revolta de Córdoba é tarefa inscrita entre as responsabilidades intelectuais de nossa geração, desafiada a intervir como nunca nas mudanças por que passa a América Latina – em especial após o advento das novas forças sociais e políticas que ascenderam aos governos centrais
de Brasil, Argentina, Venezuela, Uruguai, Equador, Bolívia, Paraguai, Panamá e Nicarágua, países
que se juntam à heróica resistência de Cuba socialista.

É possível elencar vários momentos em que os anseios de liberdade de nossos povos foram sabotados, derrotados, destruídos, vendidos por nossas apátridas elites. Forças titânicas e imperiais, como Inglaterra e
EUA, investiram contra nosso inalienável direito de liberdade, frustrando as aspirações de todos, inclusive dos estudantes em seu perene intento de mudar a universidade. Essa história não pode repetir-se. Até porque
a Reforma Universitária tornase neste momento ainda mais importante, dado que pode ser ponta-de-lança na construção de nossa verdadeira independência.

É preciso que tenhamos a lucidez da utopia e a ousadia dos estudantes de Córdoba, pois, como disseram eles, “as batidas do coração nos advertem: estamos pisando sobre uma revolução, estamos vivendo uma hora americana”. Neste alvorecer do século 21 o espírito de Córdoba deve novamente incendiar as
salas de aula da América Latina na execução plena dessa titânica tarefa histórica, antevista por
aqueles heróicos estudantes mas ainda inconclusa. Por tudo isso, conhecer o ideário e as repercussões desse evento transcendente ocorrido no país vizinho é afirmar uma contribuição original, latino-americana, à concepção de uma nova universidade, plenamente vigente e necessária.

É preciso assegurar conquistas duradouras

As mudanças políticas que vivenciamos na América Latina trazem a obrigação de consolidarmos novas conquistas, enterrando de vez o neoliberalismo e seus impactos devastadores sobre o ensino superior. É possível implementar mudanças de profundidade em nossos países, e a Reforma Universitária afirma-se
nesse sentido como bandeira de dimensão continental, vinculada à busca de projetos nacionais de
desenvolvimento próprios, baseados na história de cada uma de nossas sociedades.

A integração latino-americana é o que pode dar a cada projeto nacional sua viabilidade geopolítica e econômica. São imensas as possibilidades de que a unidade dos estudantes num contexto favorável impulsione a construção de uma universidade mais popular e democrática, a partir de medidas como as que já ocorrem no Brasil e na Venezuela. Nesses países busca-se por em marcha a ampliação do acesso, com as
universidades experimentais na Venezuela e o REUNI e o PROUNI no Brasil. A integração educacional dá passos largos com a construção de instituições latino-americanas, como a Universidade Pan-Amazônica e a UNILA (Universidade Federal da Integração Latino-Americana), que vêm juntar-se à experiência da
Escola Latino-Americana de Medicina, em Cuba. O intercâmbio estudantil ganha novo sentido e
imensas possibilidades.

Mas não será apenas com medidas tópicas, circunscritas a políticas dos governos de turno – por mais avançados que sejam –, que serão assegurados os direitos e as possibilidades da universidade do futuro. É
necessária uma sistematização e um sentido unitário, como o do Manifesto de 1918. Se a quadra política é favorável, e se se reconhece nos estudantes um fundamental ator político, cumpre enfrentar o desafio de
interpretar suas aspirações e as necessidades de nossos países para que essa sistematização possa, como diria Marx, converter-se em força material capaz de apoderar-se das massas.

A mudança já está em curso, mas se ficar restrita a ações governamentais não terá a profundidade nem o papel pedagógico necessário. É preciso empurrar os governos, mas sem cair no equívoco daqueles que, na Venezuela, opõem-se às universidades experimentais em defesa dos privilégios de uma universidade elitista, e dos que no Brasil não percebem a importância de medidas como o PROUNI, o REUNI e a reserva de vagas. Estes acabam lado a lado com os conservadores de todos os tempos. Têm medo de construir uma ampla unidade em defesa do co-governo, da ampliação do financiamento e da popularização das universidades. É ilustrativo seu isolamento ante a multidão de excluídos do ensino superior que vibra ante as
oportunidades destes dias.

Um espectro ronda a América Latina: o espectro da Revolta Estudantil de Córdoba, o espectro da luta pela Reforma Universitária, que influenciou todas as gerações nos últimos 90 anos, especialmente as visões dos revolucionários sobre o que deve ser a universidade. Visões como a de “el” Che, que continua a dizer-nos, como só ele sabia, de tão bonito e verdadeiro:

... Que tenho a dizer à Universidade como artigo primeiro, como função essencial de sua vida nesta Cuba nova? Tenho a dizer-lhe que se pinte de negro, que se pinte de mulato, não só entre os alunos mas também
entre os professores; que se pinte de operário e de camponês, que se pinte de povo, porque a Universidade não é patrimônio de ninguém e pertence ao povo (...) e o povo, tem triunfado, está até malcriado no triunfo,
pois conhece sua força e sabe se perfilar, está hoje às portas da Universidade e a Universidade deve ser
flexível, pintar-se de negro, de mulato, de operário e camponês, ou ficar sem portas, e o povo as
romperá e pintará a Universidade com as cores que desejar6.

Os estudantes são a garantia  de uma universidade mais avançada, impossível sem destronar o “deus” mercado

Por fim, cumpre ao menos anunciar dois temas de extrema importância constantes do Manifesto de Córdoba, entre tantos outros. Nele sustenta-se “que, na comunidade universitária, a soberania, o direito de dar-se
governo próprio radica principalmente nos estudantes”. E que “o conceito de autoridade que corresponde e acompanha um diretor ou um professor em um lar de estudantes universitários não pode apoiar-se na força de disciplinas estranhas à substância mesma dos estudos”. De minha parte, penso que temos aqui dois importantes ensinamentos para a presente etapa.

Com base no receituário neoliberal, tentou-se fazer da universidade parte do bazar global, impondo-lhe o primado do mercado, com certeza estranho à “substância mesma dos estudos”, à verdade, à busca do
conhecimento e às respostas que a universidade deve dar aos dilemas de nossas lutas por independência, desenvolvimento e integração. Por outro lado, é nos estudantes que reside, pelo menos no Brasil, a garantia duradoura de que não vicejarão no futuro os intentos servis de subordinação da universidade. E
isto é inseparável da dimensão do poder. Também aqui, Córdoba nos ilumina. Mas isso já é outro
assunto, para mais adiante.

Notas:

1 No Brasil, os versos abolicionistas de Castro Alves – estudante da Faculdade de Direito do
Recife – e a ousadia de Euclides da Cunha – estudante da Escola Militar do Rio de Janeiro
que atira aos pés do Ministro da Guerra seu sabre de estudante em protesto contra o
Império – são expressões do protagonismo da juventude estudantil já em fins do século 19.
2 CANCINO, Hugo. El movimiento de reforma universitaria en Córdoba Argentina, 1918:
Para una relectura de su discurso ideológico. Sociedad y Discurso. ISSN 1601-1686.
Dinamarca, nº 6, 2004. Disponível em: http://www.discurso.aau.dk/cancino_nov04.pdf.
À página 4 desse artigo lê-se que “Nuevos grupos sociales, las capas medias y sectores
populares irrumpían en el escenario social poniendo en tela de juicio el viejo sistemas
de alianzas y exigiendo la participación en el Estado y en el sistema político. Ello exigía
naturalmente una reforma del sistema político, que hiciera posible la participación electoral
de los sectores marginados. La “Unión Civica Radical” canalizó los movimientos de protesta
anti-olígarquíca de los nuevos grupos sociales, proyectándose como el partido de la reforma
política y de la modernización”.
3 Id. Ibid.

4 RIBEIRO, Darcy. A Universidade necessária. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
5 CANCINO, Hugo. Op. cit.

6 GUEVARA, Che. Discurso al recibir el doctorado honoris causa de la Universidad
Central de las Villas (28 de diciembre de 1959). Disponível em http://www.marxists.
org/espanol/guevara/59-honor.htm

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