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quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

16/12/1976 - a Chacina da Lapa - Ditadura chacina reunião do Comitê Central do PCdoB em 1976


Chacina da Lapa: em 16 de dezembro de 1976

A manhã de 16 de dezembro de 1976 foi de correrias, traição e fuzilaria em São Paulo, como contou Verônica Bercht no capítulo inicial da biografia que escreveu sobre Elza Monnerat.


Publicado 12/12/2016 21:47

​A casa na Rua Pio XI onde a cúpula do PCdoB foi surpreendida - Estadão
Capítulo 1 – Prisão

“Abaixo a ditadura. Viva o proletariado”. Dentro de um Volks chapa fria, encapuzada e espremida entre policiais, Elza gritou com força. O grito surpreendeu os policiais e, imediatamente, aquele que estava ao seu lado colocou as mãos sobre a boca dela, tampando-a sob o pano do capuz que escondia seu
rosto, enquanto a ameaçava com palavras grosseiras.

Surpreendidas também teriam ficado as pessoas que porventura escutaram o seu grito, se pudessem ver que, por debaixo do capuz, havia uma senhora já com as marcas de seus 63 anos, de cabelos lisos e grisalhos, compridos até os ombros, divididos ao meio, cobrindo um rosto quadrado, boca larga de lábios finos e sorriso matreiro de menina.

Na noite do dia 15 de dezembro de 1976, Elza saiu da casa na Rua Pio XI, número 767, no Alto da Lapa, bairro de classe média de São Paulo. Dentro do velho Corcel azul, dirigido por Joaquim Celso de Lima, ela ia, como de costume, no banco da frente. No banco de trás, João Batista Franco Drummond e Wladimir Pomar, dois dirigentes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), iam de olhos fechados. Eles haviam saído de uma reunião do Comitê Central do partido, ilegal e perseguido. Joaquim e Elza deixaram Drummond e Wladimir nas proximidades da Avenida Nove de Julho, e voltaram para a casa da rua Pio XI onde eram esperados pela próxima dupla de dirigentes, Aldo Arantes e Haroldo Rodrigues Lima. E, mais uma vez, o carro do partido saiu com Joaquim ao volante, Elza no banco da frente e os dois companheiros no banco de trás, com os olhos fechados. Nada de anormal aconteceu pelo caminho. Deixaram Aldo e Haroldo e retornaram para a casa da Lapa.

 
A noite já ia pelo meio e Elza e Joaquim tinham algumas horas para descansar. Na casa, Ângelo Arroyo e Pedro Pomar, membros da Comissão Executiva Nacional do PCdoB, já estavam deitados. José Gomes Novaes e Jover Telles, do Comitê Central do partido, e Maria Trindade, militante encarregada das tarefas domésticas, também.

Por volta das seis horas da manhã do dia 16, o Corcel azul mais uma vez saiu da casa na rua Pio XI, agora levando Novaes e Jover Telles. Como sempre, Joaquim estava ao volante, Elza no banco da frente, e os dois dirigentes atrás, de olhos fechados. Tudo parecia bem. Até que Elza, que estava virada para trás olhando seus companheiros, percebeu que o carro andava, andava, dando voltas, e pensou: “Poxa, por que está andando tanto?”. Pouco depois, Joaquim disse: “Não tem jeito, eu estou sendo seguido”. E ela respondeu: “Você dá um jeito, escapa, dá uma virada daquelas que é para a gente soltar os dois”. Nesse momento, avisou os companheiros do banco de trás: “Estamos sendo seguidos, de maneira que vocês abram os olhos, olhem para o chão, mas fiquem de olhos abertos, para na hora que eu abrir a porta do carro vocês saltarem e se mandarem. Um toma um rumo e o outro toma o rumo oposto”. Logo depois, Joaquim, achando que despistara seus perseguidores, parou o carro numa esquina do bairro de Pinheiros. Novaes saiu imediatamente e Jover Telles relutou. Elza: “Desce daí, rapaz”, e Joaquim: “Desce daí, ô”. E Elza lembrou 23 anos depois: “Aquele minuto durou como se fosse uma hora”.

Assim que Jover saiu do carro, Joaquim arrancou rapidamente, mas logo em seguida, na Avenida Faria Lima, o Corcel foi cercado por quatro fuscas da repressão, com agentes à paisana. Retirada à força do carro, Elza foi encapuzada e jogada para dentro de um dos veículos.

 
Enquanto era levada para as dependências do DOI-Codi (Departamento de Ordem Interna – Centro de Comando das Operações de Defesa Interna, especializado em obter informações e desmontar as organizações "subversivas", um dos principais centros de tortura do regime militar), na rua Tutoia, em São Paulo, Elza, mesmo encapuzada, percebeu que as repetidas paradas do carro que a conduzia eram semáforos vermelhos e, a cada uma delas, gritava palavras de ordem a plenos pulmões, palavras que pudessem indicar àqueles que estavam na rua que ali ia presa uma mulher que lutava contra a ditadura militar.

Quando chegou ao DOI-Codi, Elza ainda não sabia que havia sido presa numa sangrenta e monstruosa operação do Exército contra o Partido Comunista do Brasil. Hoje, tantos anos depois, ela se lembra desses tempos – em que não sabia como a repressão havia chegado até ela e quais companheiros haviam sido presos também –, como um dos períodos mais difíceis na prisão. Naquele dia 16 de dezembro, nas celas do DOI-Codi, ela ouviu a voz de Maria Trindade e soube, assim, que a situação era grave: o aparelho na Lapa havia caído.

Em meio a espancamentos e ameaças, um dos agentes perguntou com ar malicioso se ela gostaria de ouvir o que dois companheiros estavam falando. Elza não se intimidou e recusou a oferta. “Estava convencida de que eram o Arroyo e o Pomar”, ela conta.
 
Mas Ângelo Arroyo e Pedro Pomar tinham sido assassinados naquela manhã, minutos depois de o carro de Elza e Joaquim ter sido cercado pelos policiais. Ao ser arrancado à força do Corcel que dirigia, Joaquim ainda pôde ouvir um dos agentes dizer ao rádio: “Tudo limpo. Pode tocar a operação”. Esta mensagem – recebida pela tropa de militares e policiais comandada pelo tenente-coronel Rufino Ferreira Neves, que cercava a casa 767 – liberou o “matraquear das metralhadoras” que durou quase vinte minutos – tempo “suficiente para destruir portas, janelas e basculantes e fazer cair pedaços de reboco do teto”. Era por volta de seis e meia da manhã. Maria Trindade fazia o café. Ângelo Arroyo estava no banheiro e Pedro Pomar na sala. Com o estrondo, Arroyo abriu a porta: “O que é isso?” e caiu para frente, morto. Maria Trindade, sem entender o que estava acontecendo, saiu à rua para ver. Foi arrastada por militares até um carro da repressão, presa. Naquele instante, Pomar era assassinado na sala.

Bancada Constituinte do PCB
Pedro Pomar e o deputado comunista cearense Batista Neto no canto esquerdo, à frente, fumando Jorge Amado, no canto direito da foto, Grabois e Amazonas - Pomar, Grabois e Amazonas reorganizaram o Partido Comunista em 18/02/62 e asseguraram a continuidade da legenda comunista no Brasil. Grabois morreria na Guerrilha do Araguaia.



Eles não sabiam, mas a casa da Lapa estava cercada havia alguns dias. Quando Elza e Joaquim saíram no dia 15 de dezembro à noite levando Drummond e Wladimir, foram seguidos por carros com chapas frias, de agentes militares à paisana. Achando que estava tudo normal, eles liberaram os dois companheiros nas proximidades da Avenida Nove de Julho. “Drummond, que iria para Goiás, foi preso antes de iniciar viagem”. Wladimir chegou a notar que estavam no seu encalço e tentou despistar os perseguidores. Livrou-se de documentos que trazia consigo, mas foi capturado na Avenida Santo Amaro, “acusado de ser puxador de carro, e aí mesmo começou a ser espancado”.

Enquanto o Corcel fazia o transporte da próxima dupla, Wladimir já estava no DOI-Codi “apanhando de soco, pau e botinada”. Antes da meia-noite, ele percebeu que Drummond também estava lá. Na madrugada, escutou gritos de dor e por volta das quatro horas da manhã ouviu “uma correria, gente descendo as escadas, uma voz pedindo médico com urgência”. Drummond estava morto.


 
Da mesma forma, os militares prenderam Aldo Arantes quando ele se aproximava da estação Paraíso do metrô, algum tempo depois de ter saído do carro do partido. Haroldo Lima foi seguido e vigiado até a manhã do dia seguinte e foi preso ao sair de sua casa. O mesmo teria acontecido a Jover Telles e José Novaes se – como ficou demonstrado, anos depois, no livro Massacre na Lapa –, o primeiro não fosse o traidor que havia delatado a reunião.

O massacre da Lapa encerrou de forma brutal a longa série de assassinatos cometidos pela ditadura militar contra seus opositores. Ela ocorreu já na era da distensão, com o general Ernesto Geisel na presidência, e outro, de sua inteira confiança – Dilermando Gomes Monteiro –, no comando do II Exército, sediado em São Paulo. Até 1973, os benefícios do desenvolvimento econômico haviam sido o principal legitimador da ação dos militares no poder. Alguns setores da classe média apoiavam o regime ditatorial, fechando os olhos para a repressão que corria solta e cujos horrores tinham divulgação limitada pela censura imposta aos órgãos de imprensa. A partir de 1973, as bases que sustentaram o milagre econômico começaram a ruir. “Com as crescentes dificuldades agora enfrentadas no terreno econômico, o Estado de Segurança Nacional passou a preocupar-se com a criação de novos mecanismos para a obtenção de apoio político e social”.

As mortes de Vladimir Herzog (outubro de 1975) e Manoel Fiel Filho (janeiro de 1976), assassinados sob tortura no DOI-Codi de São Paulo, provocaram forte reação, principalmente entre setores da classe média e da Igreja, para acabar com a repressão. Estimando que as forças de segurança de São Paulo eram contrárias à distensão e “redundavam em um poder paralelo que poderia ameaçar a autoridade do Executivo central e do próprio Estado de Segurança Nacional”, Geisel demitiu o então comandante do II Exército, o general Ednardo D’Ávila, atribuindo-lhe a responsabilidade pelas mortes de Herzog e Fiel Filho, e o substituiu por um militar de suas relações – o general Dilermando –, que lhe permitiria manter o controle da situação e restabelecer a hierarquia militar, quebrada pela ação autônoma do aparato repressivo. O problema para Geisel não era, evidentemente, a existência de um aparato repressivo, o exercício da tortura e a violação dos direitos humanos. A orientação dada ao general Dilermando era clara: “[Dei] instruções para que ele procurasse evitar excessos. Se ele tivesse que montar alguma operação armada, uma operação contra comunistas atuantes, que analisasse adequadamente, para verificar se tinha fundamento. Evidentemente, eu não ia tolher sua liberdade de ação. Mas que procurasse examinar todos os casos.”

No caso do assassinato dos dirigentes do PCdoB e da tortura aos que foram presos, Dilermando seguiu as instruções de Geisel, como contou em 1978 numa entrevista à revista IstoÉ: “Aquilo foi acompanhado por mais de cinco meses de antecedência. Nós descobrimos que naquele dia iria haver uma reunião em tal lugar, com a presença de tais e tais elementos, e aí fomos um pouco embromados, porque constava para nós que o João Amazonas estaria presente e o mesmo estava na Albânia […]. Então aquilo foi uma ação exclusivamente de fundo, eu não digo militar, mas de combate à subversão.” A versão de Dilermando foi confirmada por Geisel: “Sempre se procurou acompanhar e conhecer o que o Partido [Comunista do Brasil] fazia, qual era a sua ação, como ele se conduzia, o que estava produzindo, qual era seu grau de periculosidade. Isso aconteceu durante todo o período revolucionário. […] No fim do governo, o Dilermando, já no comando do II Exército, atuou em São Paulo sobre uma grande reunião dos chefes comunistas. A questão não era mais a força que eles tinham, mas não podíamos deixar o comunismo recrudescer. Fizemos tudo para evitar um recrudescimento das ações comunistas.”

A operação que culminaria no massacre ocorrido na Lapa foi iniciada no DOI-Codi do I Exército, no Rio de Janeiro. Em meados de 1976, o Comitê Regional do PCdoB desse estado havia sido desmantelado pelas ações dos generais Reynaldo Mello de Almeida, que comandava o I Exército, e Leônidas Pires Gonçalves, chefe do Estado-Maior, que acumulava o comando do Codi, ao qual o DOI era subordinado. Manoel Jover Telles era secretário-político do Comitê Regional e, provavelmente, foi localizado pelo Exército a partir da prisão de um integrante do próprio Comitê Regional. Preso, pactuou com os militares, cedeu informações essenciais e concordou em se deixar seguir até o local da reunião, que ele mesmo não sabia qual era. A operação do exército foi montada de forma a permitir que o delator ficasse a salvo. Por isso, foi somente após a liberação de Jover que o ataque à casa da Lapa se consumou. Novaes, que também conseguiu escapar à prisão, foi poupado por estar no carro com Jover, pois se o Exército deixasse apenas um fugitivo, ficaria evidente seu papel de delator da operação.

Os policiais que prenderam Elza talvez não fizessem ideia da importância daquela pequena mulher para o partido e para os esquemas de proteção dos quadros dirigentes na clandestinidade. Era uma figura-chave, que sempre conseguiu driblar a repressão e que, em 31 anos de militância, tinha ali sua primeira (e única) prisão. Um daqueles policiais de certa forma reconheceu isso quando disse: “A senhora, com essa cara de vovó boazinha, passou várias vezes por nós e nunca desconfiamos”.

Mesmo assim, ela não foi poupada das atrocidades cometidas pela repressão policial contra aqueles que se opunham à ditadura militar.

 
Referências

A parte inicial deste capítulo, que descreve os acontecimentos da Queda da Lapa, foi escrita principalmente a partir de informações que constam em Massacre na Lapa, como o Exército liquidou o Comitê Central do PCdoB, de Pedro Estevam da Rocha Pomar (Busca Vida, SP, 1987).

A “Chacina da Lapa” e seus mártires

Ângelo Arroyo e Pedro Pomar assassinados - as armas foram plantadas pelo II Exército



 

Um dos episódios mais brutais do regime de 1964, a “Chacina da Lapa” revelou o ódio que os golpistas nutriam pelos que lutavam consequentemente pela redemocratização do país.

O Comitê Central do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), depois da reunião de 14 e 15 de dezembro de 1976, foi duramente atingido pela repressão. Com o dever cumprido em dois dias de intensas discussões, chegara a hora das despedidas. O clima era de fim de ano. Só voltariam a se ver em 1977. De olhos fechados, sob a vigilância de Elza Monnerat, foram deixando o “aparelho” em duplas. No mesmo dia 15, no começo da noite, João Batista Drummond e Wladimir Pomar, acompanhados de Elza Monnerat, responsável pela locomoção dos dirigentes do PCdoB em São Paulo, deixaram a casa da Lapa de olhos fechados a bordo de um Corcel azul dirigido por Joaquim Celso de Lima.

Pouco depois, ambos foram deixados a uma certa distância, nas imediações da Avenida Nove de Julho, e cada um seguiu para o seu lado. O Corcel retornou ao “aparelho”. Duas equipes da repressão seguiram o carro desde que deixara a casa e, em locais diferentes, uma prendeu Drummond e outra, Wladimir Pomar. Encaminhados ao DOI-Codi, na madrugada de 16 de dezembro de 1976 Drummond morreu nas mãos dos torturadores. Durante as torturas, Wladimir Pomar ouviu referências a um pacote de biscoito contendo o jornal A Classe Operária que vira com Drummond na casa da Lapa.


 
O Corcel fez a segunda viagem ainda na noite do dia 15, com Aldo Arantes e Haroldo Lima a bordo. A viagem transcorreu dentro da normalidade e ambos foram deixados no local combinado. Mal sabiam que olhos atentos observavam cada movimento do carro. Aldo Arantes foi preso dentro da estação Paraíso do metrô, a caminho da sua residência no bairro de Itaquera, Zona Leste de São Paulo. Haroldo Lima seguiu até a sua casa, na Avenida Pompéia, e foi preso somente no dia seguinte de manhã, quando deixava a residência.

Fuzilaria

No início da manhã do dia 16, o Corcel saiu da casa da Lapa com a última dupla – Jover Telles e José Gomes Novaes. Joaquim Celso de Lima conta que deixaram o “aparelho” às seis e quinze, mais ou menos. Logo na primeira curva, percebeu que um Fusca “estranho” o seguia. Fez manobras bruscas, entrou por ruas estreitas, imaginou que havia despistado o perseguidor, mas ele voltou a seguir o carro do PCdoB. Joaquim Celso de Lima avisou Elza Monnerat, que pediu à dupla conduzida para abandonar o Corcel. Outros carros apareceram. A perseguição cinematográfica terminou na Avenida Faria Lima. Ela e o motorista do PCdoB foram algemados e encaminhados ao DOI-Codi.

Enquanto Joaquim Celso de Lima fazia o Corcel do PCdoB bailar pelas ruas de São Paulo tentando fugir da repressão, a casa da Lapa fumegava. A fuzilaria começara por volta das seis e meia, após a comunicação via rádio de que Jover Telles e José Gomes Novaes já haviam desembarcado, e duraria aproximadamente vinte minutos. Equipes do DOI-Codi e do DOPS cercaram o local e fizeram pedaços de portas e janelas voar pelos ares com o peso do fogo despejado. Tampos do reboco do teto caíram, vidros se espatifaram e as paredes foram crivadas de balas. Estavam no “aparelho” Pedro Pomar, Ângelo Arroyo e Maria Trindade (encarregada das tarefas da casa). Os dois dirigentes se preparavam para começar a redigir a edição seguinte do jornal A Classe Operária.

Quando espocaram os primeiros estrondos, tentaram se falar para compreender o que estava acontecendo. Segundo Maria Trindade, a única sobrevivente, Arroyo saiu do banheiro e perguntou: ”O que é isso?”. Mal terminou de falar e foi atingido com violência. O impacto dos tiros o fez voar, bater a cabeça no teto e saltar para frente. Pedro Pomar constatou: “Que desgraça! Nos pegaram!” Voltava da conzinha para tentar destruir os documentos da reunião do Comitê Central que estavam na sala e foi violentamente fuzilado. Acabara de completar sessenta e três anos.

Farsa

A vizinha da casa número 765, Guiomar Issa, conta que durante a fuzilaria a filha Nice ouvira gritos de uma mulher em meio a muitas vozes masculinas. Para, para, dizia Maria Trindade. Atira, atira no pé dela, dizia um agente da repressão. Cessado o fogo, o chefe do DOPS, delegado Sérgio Paranhos Fleury, tocou a campainha da casa de Guiomar Issa. Pediu desculpas pelo susto e quis saber se estava tudo bem. Atrás dele, policiais trajando coletes à prova de bala chupavam laranja. Um deles explicou que a família não fora avisada da operação por precaução – poderia fazer parte da organização que ocupava a casa vizinha.

A repressão encomendou um laudo para oficializar a farsa montada na divulgação da morte de João Batista Drummond, que teria sido atropelado, e outros documentos seriam providenciados para forjar um “tiroteio” na casa da Lapa. Em nota oficial, o comandante do II Exército, general Dilermando Monteiro, disse que “durante a operação uma rua do bairro teve que ser interditada, travando-se um tiroteio na Rua Pio XI, em face da reação à bala dos sitiados, daí resultando dois subversivos mortos, havendo um terceiro morto, atropelado, quando de sua fuga”.

Em ofício enviado à II Auditoria Militar, o general Carlos Xavier de Miranda, chefe do Estado Maior do II Exército, informou os nomes dos prisioneiros: Aldo Silva Arantes, Haroldo Rodrigues Lima, Wladimir Ventura Torres Pomar, Elza de Lima Monnerat, Joaquim Celso de Lima e Maria Trindade. Dos que estavam na casa durante a reunião do Comitê Central, faltavam Jover Telles e José Gomes Novaes.






Quedas


 
Às doze horas do dia 16 de dezembro de 1976, o cônsul-geral dos Estados Unidos em São Paulo, Frederic Chapin, procurou dom Paulo Evaristo Arns na Cúria Metropolitana com a lista de nomes dos mortos e presos na mão. Estava arfante. Informou o sacerdote sobre a chacina e pediu para ele fazer gestões na busca de convencer os verdugos do DOI-Codi e do Dops a não matarem os que foram detidos.

O cônsul-geral disse que sabia da reunião há dias, mas não esperava que, com Dilermando Monteiro no comando do II Exército, fosse ocorrer uma tragédia. Avisou o cardeal que a repressão preparava o cerco à casa da Lapa poucos antes da chacina. Dom Paulo Evaristo Arns não concordou com a avaliação do cônsul-geral e tentou falar com o PCdoB. Mas as barreiras do regime não permitiram que a informação chegasse a tempo de evitar a tragédia.

A operação foi montada com base em informações de um membro da direção do PCdoB, Jover Telles. Na véspera da reunião, na casa da Lapa, Pedro Pomar e Haroldo Lima, pela Comissão de Organização, conversaram com ele sobre as “quedas” ocorridas naquele Estado. Recomendaram que alguns procedimentos fossem adotados.

Araguaia

Jover Telles era um militante experiente. Fora destacado dirigente sindical no Rio Grande do Sul e deputado estadual naquele estado. No processo de reorganização do Partido Comunista do Brasil, tomou o caminho do novo PCB. Mais tarde entrou para o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) e depois para o PCdoB.

A Comissão de Organização sabia que desde 1975 muitas lideranças do PCdoB no Rio de Janeiro haviam sido presas, mas não tinha a dimensão do estrago feito pela repressão. Não fazia a menor ideia de que o Comitê Central se aproximava do precipício. Em circunstâncias ainda não totalmente esclarecidas, até uma militante que morava com Jover Telles, conhecida como Hilda, fora presa. A repressão montara um esquema engenhoso para desarticular o Partido. Segundo uma nota do PCdoB sobre a chacina da Lapa, a operação fora montada pelo I Exército, sediado no Rio de Janeiro, com auxílio do Centro de Informação da Marinha (Cenimar) e do II Exército, sediado em São Paulo.

O Rio de Janeiro estava marcado pela repressão ao PCdoB desde o início dos anos 1970 por conta das atividades voltadas para o Araguaia, quando fora criada a União da Juventude Patriótica (UJP). A operação que resultou nas prisões e mortes de quatro dirigentes na virada de 1972 para 1973 também se desenvolveu no Rio de Janeiro, apesar de ter sido iniciada no estado do Espírito Santo. Como era de se supor, a vigilância sobre o PCdoB usava todas as técnicas possíveis para acompanhar os passos dos comunistas. Uma delas foi a cooptação do principal dirigente do Partido no estado.

Amazonas

Jover Telles prestou depoimento a agentes da repressão em 8 de dezembro de 1976. Estava preso. Falou cordialmente da história do PCdoB e comentou o relatório de Ângelo Arroyo sobre a Guerrilha do Araguaia. Até detalhes do debate em curso foram revelados. “Minha posição os senhores já conhecem: eu acho que a guerra não se justifica. A guerra popular no Brasil é inviável”, avaliou ele para a repressão.

Após a chacina da Lapa, para o Comitê Central Jover Telles estava desaparecido. Com muito esforço, foi encontrado. Precisava prestar conta sobre o ocorrido, como de resto todos os envolvidos. Usando o codinome de Oliveira, ele fez um relatório dando a sua versão dos fatos. Disse que perdera o contato com a Comissão de Organização após a baixa do “Juca” (Armando Frutuoso) em 30 de setembro de 1975, retomado somente em maio ou junho de 1976, conforme informou na reunião da Comissão Executiva de agosto daquele ano. Uma “referência” fora definida – em todo primeiro domingo de cada mês haveria um contato. Falhara em agosto e setembro, que seria com João Amazonas no Rio de Janeiro, e ficara outra vez isolado.

A informação não confere com os fatos. Segundo o próprio Jover Telles, na reunião do Comitê Central de dezembro de 1976 Pedro Pomar informou que a combinação do Amazonas fora a seguinte: caso o intermediário não comparecesse aos dois “pontos”, Jover Telles deveria ir diretamente a São Paulo. “É possível que assim fosse o combinado, mas ou isto foi esquecido ou mal compreendido pelo Oliveira, que acabou cobrindo os ‘pontos’ em 25 de setembro, 23 de outubro e a ‘referência’ a 25 de outubro, sem maior êxito, ficando dependendo da próxima ‘referência’ a ser coberta no dia 25 de novembro, quando realmente verificou-se o contato e marcado o ‘ponto’ para o Oliveira em São Paulo, a ser coberto no dia 11 de dezembro de 1976”, escreveu no relatório.

Baiano

Jover Telles também relatou que no período de tempo abrangido pelos fatos descritos algo grave sucedera. No dia 3 de outubro de 1976, um domingo, saíra de casa às sete horas da manhã para comprar pão a uma distância de duzentos a trezentos metros, na mesma rua da sua residência. Ao tentar voltar, percebeu vários carros, alguns de chapa branca, outros não, estacionados nas proximidades da sua casa. Desembarcaram quinze ou vinte pessoas e cercaram o grupo de residências onde estava a dele. Outros homens ocuparam as esquinas, cercando totalmente a área. Com o pão e o jornal sob o braço, dirigiu-se no sentido contrário à área conflagrada, atravessou uma praça, tomou um táxi e saiu da região.

Sem explicar como nem por que, disse que estava com três mil e quinhentos cruzeiros no bolso  Distante do local do perigo, desembarcou, andou um pouco a pé e tomou um ônibus até o Méier. Deu voltas e mais voltas para ver se estava sendo seguido e, como nada notara, tomou outro táxi e rumou para Copacabana. Às quatorze horas, seguiu de ônibus até o Méier, onde tomou um táxi e foi para a área de sua residência. Notou que o “aparato” já não era tão ostensivo. Alguns “suspeitos” permaneciam plantados em algumas esquinas. Ficou certo que o assunto era com ele. Seguiu até Marechal Hermes, tomou um ônibus para Nova Iguaçu, de lá foi para Caxias, perambulou pela cidade até às vinte horas, voltou para o Rio de Janeiro, onde pernoitou. No dia 4 de manhã, tomou o trem com destino a São Paulo e à noite foi para Porto Alegre.

No dia 6, Jover Telles disse que foi para o interior do Rio Grande do Sul e no dia 21 embarcou de volta para o Rio de Janeiro, onde cobriu sem êxito o “ponto” de 23 de outubro e a “referência” de 25 de novembro. Teria um mês pela frente até a data combinada para o contato seguinte. Alugou um quarto “no beiço”, adiantando parte do aluguel, e passou os dias girando pelas cidades vizinhas para não deixar pistas. Em 25 de novembro, compareceu à “referência”, onde encontrou o “baiano” (o dirigente do PCdoB Sérgio Miranda), que marcou 11 de dezembro para estar em São Paulo no ponto em que só ele, Jover Telles, e João Amazonas conheciam.

Divergências

Jover Telles disse que, no “aparelho”, conversou com Pedro Pomar e Ângelo Arroyo sobre os acontecimentos que descrevera. Combinaram que depois da reunião do Comitê Central eles três decidiriam sobre as medidas cabíveis. Estranhamente, Haroldo Lima, que era da Comissão de Organização e sobrevivera à chacina, não estava na conversa. Segundo Jover Telles, Pedro Pomar decidiu não tocar no assunto no curso da reunião para não desviar a atenção. O problema exigia medidas concretas que deveriam ser acertadas em âmbito restrito, afirmou.

Na conversa combinada para 15 de dezembro de 1976, após quase todos terem deixado o “aparelho”, ficou decidido que Jover Telles iria ao Rio de Janeiro para tentar restabelecer ligações e voltaria para São Paulo no dia 26 do mesmo mês, com a perspectiva de não mais voltar a atuar naquele estado. Ao mesmo tempo, caso houvesse algum contratempo, foi marcada nova “referência” no Rio de Janeiro para 25 de janeiro de 1977. Além disso, procurando assegurar a continuidade do contato, caso sucedesse algo com Pedro Pomar – não explicou por que e o que poderia suceder -, Ângelo Arroyo cumpriria a missão em outra “referência”. No final da conversa, Pedro Pomar entregou-lhe oito mil cruzeiros.

Jover Telles relata que na noite de 11 de dezembro de 1976, um sábado, todos os membros da Comissão Executiva – menos João Amazonas e Renato Rabelo, que estavam fora do país – entraram no “aparelho”. No domingo, dia 12, ocorreu a reunião da Comissão Executiva dedicada aos assuntos que seriam levados para o Comitê Central. Na noite do dia 12, entraram os demais. A reunião de 14 e 15, segundo Jover Telles, desenvolveu-se normalmente, seguindo a ordem do dia estabelecida. Somente surgiram algumas divergências em torno da nota que a Comissão Executiva havia editado sobre as ocorrências do Araguaia. Diante dos acontecimentos do dia 16, ele diz que decidiu deixar o Rio de Janeiro e ir para Porto Alegre. Viajou de avião, por segurança, em 21 ou 22 de dezembro de 1976.

O dedo-duro, Jover Telles, prestigiado, veio do Comitê Central do PCB, tendo estado na URSS, China e Albânia, virou traidor e recebeu dinheiro para delatar o PCdoB
(blog Coletivizando)




Expulsão

A localização da sua casa no Rio de Janeiro pela repressão, segundo Jover Tolles, era um mistério, outra preocupação. Só ele conhecia o local. Durante o tempo em que lá morou, por mais de três anos, nunca notara nada de anormal. No local estavam livros – inclusive alguns que estava escrevendo -, documentos e objetos de uso doméstico. Relatou como estava sobrevivendo com dificuldades no Rio Grande Sul, fazendo traduções de francês e espanhol para o português e à custa de ajuda da família. Reclamou da saúde e se considerou um “peso morto” para qualquer organização. “Vocês que seguem a Albânia, acham que estão certos, sigam o vosso caminho. O Oliveira seguirá seu próprio caminho, que, nesta altura da vida e nas condições de saúde em que se encontra, já não é um caminho, mas um ponto final. É só”, finalizou.

Jover Telles seria oficialmente expulso no VI Congresso do PCdoB, em 1983. A resolução número 4, publicada no jornal A Classe Operária de fevereiro/março de 1983, diz:

O Congresso do Partido Comunista do Brasil (6º), depois de examinar o Relatório apresentado pela comissão encarregada de apurar as causas da queda da Lapa em dezembro de 1976, decide aprovar esse relatório e confirmar a expulsão de Manoel Jover Telles das fileiras do Partido, como traidor e colaborador direto dos órgãos de repressão. Foi ele que forneceu os dados e indicações do local e da reunião do Comitê Central, em meados de dezembro de 1976, participando pessoalmente do esquema montado pelo I e II Exércitos para prender e assassinar dirigentes do Partido. O Relatório deve descer a todos os organismos partidários, com as respectivas conclusões, a fim de estimular a vigilância de classe do Partido

Jover Telles passou seus últimos dias em Santa Catarina, onde era conhecido como “Manolo”. Pertencia ao Grupo de Poetas Livres e à Academia Catarinense de Letras e Artes. Sofreu derrame cerebral, foi hospitalizado, mas não resistiu. Faleceu na noite de um sábado, dia 16 de junho de 2007.

O cemitério de Perus, onde os torturadores enterraram tantos heróis, vai ficar conhecido como a colina dos mártires. João Amazonas pronunciou essas palavras para definir o Cemitério dom Bosco, em Perus, um dos locais em que muitas vítimas fatais da barbárie que tomou conta do país com o regime de 1964 foram sepultadas em São Paulo. Os corpos de Pedro Pomar e Ângelo Arroyo foram descobertos ali em 1980.

 
Outras fontes que contribuíram para essa descrição foram: Jornal do Brasil, 05-04-1992; O Globo, 1º-05-1996; e entrevistas com Elza Monnerat, João Amazonas, Aldo Arantes e Haroldo Lima.

As citações sobre a conjuntura da época em que ocorreu a Queda da Lapa constam em Estado e oposição no Brasil (1964-1984), de Maria Helena Moreira Alves (Vozes, Petrópolis, 1984), e as declarações de Ernesto Geisel encontram-se em Ernesto Geisel, de Maria Celina D’Araujo e Celso Castro (Editora FGV, RJ, 1997). A declaração de Dilermando está em IstoÉ, 13-12-1978.
Do livro: Verônica Bercht. Coração vermelho – A vida de Elza Monnerat. 2ª Edição. São Paulo, Editora Anita Garibaldi/Fundação Maurício Grabois, 2013


General admite que ditadura subornou traidor para liquidar PCdoB

Em entrevista ao programa Dossiê Globonews, exibida no sábado (3), o general Leônidas Pires Gonçalves, ex-chefe do DOI-Codi do Exército no Rio de Janeiro (1974-1977), admitiu que o regime militar pagou 150 mil cruzeiros para que Manoel Jover Telles traísse o PCdoB e se aliasse à repressão. As informações obtidas a partir do suborno foram encaminhadas ao II Exército, de São Paulo, que pôs em operação a Chacina da Lapa — na qual três dirigentes nacionais do PCdoB foram fuzilados.
 

Por André Cintra

O depoimento de Leônidas, mais de 33 anos depois da chacina, não só desmonta a versão “oficial” do regime — como também detalha como Jover Telles, o “Rui”, se vendeu aos militares. É a primeira vez que um membro do Exército confirma, publicamente, a verdade sobre a Chacina da Lapa.O general assumiu ter autorizado — ele próprio — o suborno ao traidor do PCdoB. “A ideia foi minha. Fui adido militar na Colômbia. Aprendi que lá eles compravam todos os subversivos com dinheiro”, declarou o milico à Globonews, sem citar o nome de Jover Telles.Segundo Leônidas, o traidor foi preso em meados de 1976 e se vendeu à ditadura, informando quando haveria a próxima reunião do Comitê Central (CC) do PCdoB. “Deu o dia e a hora por 150 mil, entregues à filha dele, em Porto Alegre”, relatou o general na entrevista. Já era público que o regime prometeu também emprego a Telles e à sua filha na fábrica de armas Amadeo Rossi, no Rio Grande do Sul.A reunião do CC ocorreu de 11 a 15 de dezembro de 1976, numa casa situada na Rua Pio XI, 767, no bairro paulistano da Lapa. Ao final do encontro, o DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna) entrou em ação.Já na madrugada para a manhã de 16 de dezembro, uma quinta-feira, o regime assassinou de cara dois dirigentes comunistas que permaneciam na casa — Ângelo Arroyo e Pedro Pomar. Contra Pomar, desarmado, foram disparados cerca de 50 tiros certeiros. João Baptista Drummond morreu horas depois, depois de ser preso e violentado pelo regime. Outros quatro dirigentes — Aldo Arantes, Elza Monnerat, Haroldo Lima e Wladimir Pomar — também foram levados à prisão e à tortura.Uma investigação levada a cabo pela direção do partido, anos depois do massacre, já havia apontado a colaboração de Jover Telles. Relatório aprovado no 6º Congresso do PCdoB, em 1983, responsabilizou o traidor pela chacina e ratificou sua expulsão definitiva das fileiras do partido. Em seus diários secretos sobre o regime militar, um agente do Centro de Informações do Exército conhecido como Carioca também confirmou que Jover Telles serviu à ditadura. A revelação está no livro Sem Vestígios — Revelações de um Agente Secreto da Ditadura Militar Brasileira (Geração Editorial, 2008).Segundo Carioca, Jover Telles prestou depoimento ao regime em 8 de dezembro de 1976, tecendo críticas coléricas ao PCdoB e informando o ponto na Rua Pio XI e a data da reunião. O veículo que transportava Jover Telles para a casa foi seguido por outros 35 carros.A Chacina da Lapa, por sua crueldade, surpreendeu até mesmo integrantes do regime que defendiam a “distensão” anunciada em 1974 pelo general-presidente Ernesto Geisel. Fazia 11 meses que o II Exército não registrava uma única morte de “subversivo” — a última havia sido a do metalúrgico Manuel Fiel Filho, sob tortura, em 17 de janeiro de 1976. O terrorismo de Estado, no entanto, estava vivo.

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